Durante a recolha de elementos que me auxiliassem na redacção do apontamento sobre o pedido da Companhia de Moçambique, para a sobrecarga de selos com a legenda alusiva à viagem do príncipe D. Luís de Bragança ao seu território, tive obrigatoriamente de fazer uma consulta ao Decreto de 8 de Outubro de 1900, diploma este que regulava as sobretaxas e sobrecargas a executar sobre selos das colónias e companhias majestáticas. No preâmbulo do diploma, e como uma das justificações, para a imposição de severas restrições na execução das referidas sobrecargas e sobretaxas, alude-se à emissão não autorizada dos selos sobrecarregados do Centenário Antonino na província de Moçambique. Como na pesquisa e investigação que venho realizando me deparei com alguma informação sobre o assunto, dedico aqui uma especial atenção ao tema, que me parece ser aliciante, e ilustrativo da forma de agir dos governantes da época.
A emissão dos selos com a sobrecarga alusiva ao Centenário, foi autorizada localmente, pela Portaria de iniciativa governamental com o n.º 164, datada de 28 de Junho de 1895, antevéspera do início de circulação dos novos selos. Estas fórmulas de franquia destinavam-se a comemorar o 5.º Centenário do Nascimento de S. António de Lisboa, por sugestão da Comissão dos Festejos de Santo António, e teriam curso legal durante os meses de Julho e Agosto de 1895, muito além da data do nascimento do Santo (13 de Junho).
A Portaria que reproduzimos estipula as condições de circulação destas fórmulas de franquia, porém verifica-se pelo articulado que elas circulariam também, para além do Distrito de Moçambique, nos Distritos Postais da Zambézia e Inhambane. Porém a circulação em Inhambane destas fórmulas de franquia foi substituída por uma outra emissão preparada especificamente para aquele Distrito Postal.
Pelo Decreto de 2 de Junho de 1892, art,º 1, n.º 4, só e apenas, o Ministro de Estado da Marinha e Ultramar podia autorizar a alteração das regras para a emissão de fórmulas de franquia, pelo que esta emissão carecia da sua autorização. Arvorado dos poderes que lhe poderiam conferir o seu cargo de Comissário Régio, António Enes exorbitou nas suas funções, porquanto tendo alguns poderes discricionários, estes só poderiam ser usados em situações de extrema necessidade, quando estivessem em causa interesses económicos, políticos e de soberania do território, e assim mesmo, deveria dar imediato conhecimento ao Governo na Metrópole das decisões tomadas. Este caso da sobrecarga de fórmulas de franquia para comemoração de uma efeméride não nos parece, nem pareceu ao Ministro do Ultramar ser um dos casos enquadráveis nas suas competências de excepção. Seria necessária uma autorização ministerial para o acto, e tão mais grave é a decisão tomada, porque à semelhança do que acontecia com a falta de selos nas colónias, um simples telegrama para o Ministro a solicitar a devida autorização para sobretaxar fórmulas de franquia, tinha resposta telegráfica, normalmente afirmativa, no prazo máximo de 48 horas.
Alertado para o facto da existência de tais selos e como não havia sido autorizada a sua sobrecarga a Direcção Geral do Ultramar através da sua 3.ª Repartição remeteu o ofício n.º 489 de 22.10.95, que se transcreve, para o Governador-Geral solicitando explicações sobre o assunto:
“Constando nesta Secretaria de Estado que em Moçambique foram affixados em correspondencias sellos postaes que teem o carimbo (1395 – Centenário Antonino – 1895) e não havendo sido auctorizada esta sobretaxa pelo Governo da Metrópole nem podendo o Governo d’essa Província auctorizá-las como é preceituado no decreto de 2 de Junho de 1892, queira o Sr., de ordem do Ex. Sr. Ministro e Secretario d’Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar informar sobre o assumpto indicando em que diploma se fundou a circulação das indicadas estampilhas.”
Tal como em outras tantas situações, parece que este ofício ficou sem resposta, pois mais nenhuma referência aparece nos registos da Direcção Geral do Ultramar que se encontram arquivados no AHU. Também não se encontra, nos livros de minutas da 3.ª Repartição da DGU, qualquer ofício a enviar à posteriori os espécimes que obrigatoriamente se deveriam enviar para a Secretária Internacional de Berne, pelo que podemos com uma certeza quase absoluta afirmar que eles não foram remetidos para aquela Secretaria como era dos regulamentos. Só se voltaria a escrever sobre estes selos cerca de dois anos depois, quando pelo ofício n.º 65 de 28 de Junho de 1897, da Repartição de Fazenda de Moçambique para a 3.ª Repartição da DGU, que a seguir se reproduz e transcreve, é solicitada autorização para que as sobras da emissão fossem remetidas para a Casa da Moeda:
“Digne-se V. Ex.ª obter, que esta repartição seja auctorizada a abater à carga do thesoureiro geral e a remetter à casa da moeda as estampilhas postaes, que haviam sido preparadas para comemorar o centinário Antoniano e que foram, em tempos mandadas retirar de circulação.
Estas estampilhas no valor de 15.400.000 reis – numeros redondos – representam actualmente uma difficuldade para a rapida apreciação das formulas de franquia especiaes necessarias ao respectivo deposito por occasião de se organisar as requisições trimestrais a remetter a essa direcção geral e um gravame para os serviços de balanço ao Cofre.”
Este pedido mereceu o seguinte despacho exarado no ofício, pelo punho do Chefe da 3.ª Secção: “Parece-me que nenhuma duvida há em se conceder a auctorização pedida uma vez que na Província se proceda a um balanço minucioso dos valores de que se trata lavrando-se por essa occasião um auto do qual será enviada copia a esta Secretaria de Estado. 12 Setembro 1897” .
Apresentada a informação ao Ministro este deliberou aceita-la lavrando-se o despacho no mesmo ofício: “S. Ex.ª o Ministro conforma-se na informação da Rep. 11-10º-97 a ) F. Costa”.
A resposta a este ofício, informando do despacho que mereceu, foi dada por um ofício datado de 14 de Outubro de 1897. Pelos vistos o balanço foi moroso, pois só volvidos 3 anos é que os selos foram remetidos para Portugal. Em 4 de Setembro de 1900 a DGU pelo seu ofício n.º 220/900 solicita à Alfandega de Lisboa que proceda ao despacho de um caixote com selos fora de circulação, remetidos de Lourenço Marques pelo Vapor Portugal. Pelo ofício n.º 249/900 de 14 de Setembro do mesmo ano foi solicitado à Casa da Moeda que ficasse convenientemente guardado à sua ordem, até ulterior resolução, o caixote contendo os selos recebidos de Moçambique.
A saga destes selos não terminou por aqui. Alguns anos mais tarde são vendidos em leilão ao comerciante filatélico Eládio dos Santos, onde se mantiveram por dezenas de anos, onde uma parte foi sendo vendida ao retalho. Pelo que soubemos, há cerca de seis anos atrás (2005), o stock de selos deste comerciante foi adquirido na sua globalidade por um intermediário filatélico trabalhando para a AFINSA (Madrid), onde presume-se se encontrarem. Pelo que se apurou foram adquiridas 15.400 séries em folhas. Ora sendo o valor facial da série de 750 reis esses selos terão um valor total ao facial de 11.550.000 reis, isto é, 75% dos selos que a Repartição de Fazenda de Moçambique declarou existirem em 1897 no cofre do Tesoureiro.
As voltas que os selos deram. Qual será o fim destes selos? Garantidamente a saga ainda não terminou. E já agora como classificar estes selos? Qual a diferença substancial de génese entre estes selos e os do Cabo Delgado? Será que os conceitos britânicos que tão rapidamente importamos e assimilamos (p.e. “bogus”) se aplicam nestes casos? Ou será que temos que criar novos conceitos adaptados à realidade portuguesa, tendo em conta a especificidade e permissividade das nossas leis e da ancestral tendência portuguesa de as interpretar segundo os seus interesses particulares? Aqui fica um desafio.
Bibliografia
· Boletim Oficial de Moçambique
· Cota 694 1D SEMU DGU Cx
· Cota 482 DGU 3.ª REP Lv-886 – 1897 Minutas Outubro-Dezembro
· Cota 584 DGU 3.ª REP Lv – 1900 Minutas Julho-Setembro
Sem comentários:
Enviar um comentário