domingo, 1 de julho de 2012

Angola - S. Tomé * Ambulâncias marítimas


            Há cerca de quinze anos, num período em que era frequentador habitual da biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, dedicava-me a uma recolha generalizada, sem um propósito específico, do que se publicava nos Boletins Oficias da Província de Angola sobre os seus serviços de correio.
            Em determinado momento deparo-me, com alguma surpresa, perante uma Portaria que não fazia qualquer sentido, porque versava um tema que presumo era único no panorama dos serviços postais portugueses, quer continentais, quer ultramarinos: o estabelecimento de ambulâncias marítimas.
            Todos nós conhecemos, e há muitos filatelistas que se dedicam à temática com grande fervor, as ambulâncias ferroviárias estabelecidas em praticamente todas as ligações ferroviárias portuguesas. Porém existiam, pelos menos no papel, as agora denominadas ambulâncias marítimas, em Angola e entre Angola e S. Tomé e Príncipe.
            É evidente que perante a descoberta desta legislação, que pelos vistos passou despercebida aos aficionados do correio marítimo, fiquei atento, esperando que algum dia aparecesse algum exemplar filatélico com alguma obliteração que indiciasse terem na realidade existido tais ambulâncias. O tempo foi decorrendo e nunca apareceu a tal preciosidade, pelo que foi caindo em esquecimento o assunto ficando arrumado no, por mim intitulado, “rol das quimeras”. Porém, quando menos se espera aparece algo que nos faz trazer à memória o que para mim seria utopia.
            Numa daquelas tardes de amena cavaqueira filatélica na sede do Clube Filatélico de Portugal, com os meus amigos Manuel Costa, Acácio Luz e Guilherme Rodrigues estávamos por ali “matando os neurónios” a tentar descobrir o encaminhamento de dois postais ilustrados enviados da Madeira e Viseu para Luanda no ano de 1918. Estivemos durante bastante tempo “engendrando” circulações e encaminhamentos qualquer deles o mais mirabolante possível, para tentar saber como aqueles postais ilustrados tinham chegado a Luanda, sem encontrarmos uma solução coerente e racional. A determinada altura, veio-me à memória o caso das ambulâncias marítimas e fez-se-me luz. Porque não?
            Não tinha presente a data do início das mesmas, nem os pormenores da sua execução, pelo que fiquei de procurar a legislação em causa e fazer uma reavaliação do assunto em discussão. Porém, outros assuntos se sobrepuseram e só há dias por um acaso me deparei com a cópia da tal Portaria. De imediato contacto o Manuel Costa a pedir-lhe imagens dos postais ilustrados e aí vou para mais uma aventura filatélica.

O vapor “África” da Empresa Nacional de Navegação

            O estabelecimento das ambulâncias marítimas está regulamentado pela Portaria n.º 185 de 14.11.1917, publicada no Boletim Oficial de Angola n.º 42 – I Série de 17.11.1917.
            O seu Art.º 1 estabelece que “São criadas estações postais ambulantes marítimas entre o porto de S. Tomé e os portos da Província de Angola”.
            O artigo seguinte estabelece que as estações postais ambulantes funcionarão a bordo dos paquetes da Empresa Nacional de Navegação, executando os serviços de venda de selos e mais fórmulas de franquia, recepção de correspondências ordinárias e registadas, abertura de malas e divisão das correspondências ordinárias procedentes dos portos a norte de S. Tomé, o de distribuição destas correspondências quando dirigidas às tripulações e passageiros dos respectivos paquetes, além do serviço de permuta de malas em todos os portos de escala, desde S. Tomé até Moçamedes.
            As estações postais ambulantes marítimas entre Angola e S. Tomé denominam-se “ambulâncias ascendentes” e as de S. Tomé para Angola denominam-se “ambulâncias descendentes”.
            Segundo o Art.º 5.º aos chefes destas estações ambulantes marítimas competia:
  • Comparecer a bordo, nos portos da província de Angola, para as viagens ascendentes, duas horas antes das partidas dos paquetes e nos portos de S. Tomé e Luanda para as viagens descendentes, logo que os paquetes fundeiem.
  • Receber, nos portos de S. Tomé e Luanda, dos encarregados de serviço do correio a bordo dos paquetes, as malas procedentes dos portos a norte.
  • Abrir as referidas malas e dividir, tanto quanto possível, as correspondências ordinárias nelas contidas e destinadas aos portos da província de Angola, por grupos, para caixas de apartados e para entrega domiciliária, de modo a facilitar a sua rápida distribuição.
  • Manipular as correspondências ordinárias que sejam depositadas nas caixas de correio a bordo antes das partidas dos paquetes ou nos portos de escala, as contidas em malas fechadas para a ambulância marítima e as de última hora e bem assim as registadas na ambulância ou a elas destinada.
  • Vender selos e demais fórmulas de franquia, tanto aos passageiros e tripulação de bordo como a estranhos, que nos portos os procurem.
  • Permutar malas nos portos de escala
  • Providenciar em tudo o que for necessário, inclusivamente em caso de acidente, assegurando a mais rápida expedição das malas e distribuição da correspondência.

O porto de S. Tomé

Pelo Art.º 7.º é determinado que as caixas de correio a bordo dos paquetes encerrem 15 minutos antes das suas partidas e assim se conservarão durante a viagem, podendo contudo no período de quinze minutos antes da partida serem recebidas correspondências em mão, que serão consideradas de “última hora” e tratadas como tal de acordo o art.º n.º 166 e seus parágrafos do Regulamento de 11 de Dezembro de 1902.
Estipula ainda o art.º 11.º de que é obrigatório o uso de uniforme ao pessoal postal ambulante que preste serviço a bordo dos paquetes desde o seu embarque.
Os restantes dos 13 artigos que constituem a portaria são de índole administrativa, despiciendas para este apontamento.
A Ordem de Serviço n.º 456, datada de 30 de Novembro de 1917, da Repartição Superior dos Correios de Angola, publicada no Boletim dos Correios e Telégrafos n.º 11 de Novembro de 1917 vem regulamentar a execução do serviço ambulante de acordo com o Art.º 13 da citada Portaria. Não se vai aqui reproduzir o documento todo por ser extenso, porém podemos realçar as seguintes determinações:
  • O serviço ambulante ascendente iniciou-se com o primeiro paquete da Empresa Nacional de Navegação que saiu em Dezembro de 1917 de Luanda para S. Tomé. Segundo informação colhida no Boletim Oficial de Angola a primeira ambulância ascendente foi feita no Paquete Moçambique que saiu de Luanda no dia 20 de Dezembro.
  • Havendo três paquetes mensais, denominados rápido, semi-rápido e não rápido, dependendo do número de escalas que cada um fazia, foram destacados 3 funcionários da Estação Central de Luanda para cada um deles se encarregar do serviço a bordo nas ambulâncias de Luanda para São Tomé e de S. Tomé para Luanda.
  • Do mesmo modo, no primeiro paquete de Dezembro de 1917 que saiu do Lobito com destino a Luanda, embarcaram dois funcionários da Central de Benguela que se encarregariam das ambulâncias Luanda-Moçamedes e Moçamedes-Luanda. Também neste caso a primeira ambulância foi efectuada pelo referido Paquete Moçambique que saiu do Lobito a 18 de Dezembro com destino a Luanda.
  • As restantes determinações referem-se à forma como devem ser organizadas a bordo as diversas malas, de forma a facilitar a sua distribuição em terra.
  • Como curiosidade direi que a primeira ambulância descendente foi feita no Paquete Beira que saiu de S. Tomé a 30 de Dezembro chegando a Luanda dia 2 de Janeiro de 1918.

Paquete Moçambique

Podemos com toda a propriedade afirmar, no caso presente, estar-se perante uma estação postal com quase todos os seus serviços instalados a bordo dos paquetes da Empresa Nacional de Navegação.
Seria expectável que uma estação com esta dimensão tivesse uma marca de dia exclusiva para obliteração das correspondências, porque funcionava como uma estação de trânsito, e a ideia subjacente à sua criação era de que as correspondência que daí saiam para terra, já deveriam estar preparadas para serem encaminhadas para os apartados e pela distribuição domiciliária.
Pela análise dos exemplares filatélicos reproduzidos nas figuras 1, 2 e 3, acabamos por perceber a razão porque numa primeira abordagem não foi possível descortinar as marcas de dia utilizadas nestas ambulâncias marítimas, pois:
As marcas de dia usadas em tempos pertenceram a ambulâncias ferroviárias
            Quando em 1917 foram criadas estas ambulâncias o Mundo encontrava-se no auge da primeira guerra, sofrendo com uma grande crise social económica e financeira, da qual Angola não era excepção, faltando quase tudo. Perante um estado de penúria económica não era crível que se mandassem fazer marcas de dia para o serviço que se acaba de criar. Assim houve de socorrer-se de marcas de recurso.

Traçado da linha ferroviária do CFL

            Pela Ordem de Serviço n.º 310 de 8 de Setembro de 1913 da Repartição Superior dos Correios de Angola, publicada no n.º 9 do Boletim dos Correios de Angola – Setembro 1913, foram suspensas as ambulâncias ferroviárias V e VI dos Caminhos-de-Ferro de Luanda, por falta de pessoal suficiente para organizar o serviço ambulante. No entanto por um acordo estabelecido entre os Correios e a Companhia dos Caminhos de Ferro Atravez de África, a expedição e recepção de malas continuaram-se a fazer de Luanda e para Luanda nos comboios ascendentes às 3.ªs e descendentes às 4.ªs ao cuidado dos respectivos condutores das estações de Luanda, Cacuaco, Quifandongo, Cabiri, Bom Jesus, Muxima (por Cassoneca), Zenza do Itombe, Cassoalala, Canhoca, N’Dala Tando, Ambaca e Lucala. As outras ambulâncias (I, II, III e IV) continuaram a processar-se como habitualmente. Não tendo utilidade as marcas de dia aí utilizadas devem ter sido recolhidas ao Correio Central de Luanda. Serão estas marcas de dia que irão ser utilizadas como marcas das estações ambulantes marítimas. A marca de dia da AMBULÂNCIA V será utilizada nas ambulâncias marítimas de S. Tomé para Luanda e presume-se (porque não conhecemos nenhum objecto postal circulado nesse sentido) que a marca da AMBULÂNCIA VI na ambulância marítima ascendente de Luanda para S. Tomé.
            Analisemos agora os postais ilustrados que, por cortesia do Manuel Costa e Guilherme Rodrigues, nos é dado a apreciar. No primeiro caso (Figura 1) temos um postal ilustrado remetido do Funchal (15.01.18) para Luanda (21.02.18) com selos Ceres de 1c castanho, denteado 15x14 AF221. Passou pela censura do Funchal em 16.01.18. Pode-se observar o carimbo batido a preto da AMBULÂNCIA V datado de 18 de Fevereiro de 1918, três dias antes da obliteração da estação de destino em Luanda. Desta mesma correspondência existe um outro postal ilustrado enviado na mesma data e com as mesmas características que não se reproduz por se considerar desnecessário.

Figura 1 – Cortesia de Manuel Costa

            No segundo caso (Figura 2) temos um postal ilustrado circulado no mesmo paquete do anterior. Remetido de Lisboa (28.01.18) para Luanda (21.02.18) com selo de 1c castanho, denteado 15x14 AF221. Passou pela censura em Lisboa. Também se pode observar o carimbo batido a preto da AMBULÂNCIA V com a mesma data de 18.02.1918, três dias antes da obliteração da estação de destino em Luanda.

Figura 2 – Cortesia de Guilherme Rodrigues

No terceiro caso (Figura 3) temos também um postal ilustrado remetido de Viseu (21.07.1918) para Luanda (27.08.18) com um selo de 2c laranja, denteado 15x14, AF223. Tal como o primeiro postal ilustrado também está obliterado com o carimbo AMBULÂNCIA V, datado de 24 de Agosto de 1918, também três dias antes da obliteração de destino.

Figura 3 – Cortesia de Manuel Costa

            Normalmente os paquetes demoravam 4 dias na sua ligação entre S. Tomé e Luanda. Assim podemos concluir que no dia imediato à partida dos paquetes a estação ambulante abria as malas vinda dos portos a norte de S. Tomé e procedia à distribuição da correspondência de acordo com a alínea c) do artigo 5.º da Portaria n.º 185, obliterando-a com a sua respectiva marca de dia.


            Era minha intenção apresentar os “timetables” dos paquetes que transportaram estes exemplares, porém é quase impossível fazê-lo, com a fiabilidade sempre necessária nestes e noutros casos, porque durante o período que mediou o início e o fim da 1.ª guerra, o movimento marítimo ou não era publicitado, ou quando o faziam as datas de chegada e saída dos paquetes não correspondem à verdade. Isto provavelmente para confundir os serviços de espionagem e preservando a integridade dos paquetes sujeitos a possíveis ataques do inimigo.
            Como atrás referi o carimbo AMBULÂNCIA V servia anteriormente na ambulância ferroviária dos comboios que partiam de Luanda às 3.ª feiras com destino a Malange. Ora o dia 18.02.1918 corresponde a uma 2.ª feira e o dia 24.08.1918 a um sábado. Assim sendo eles não foram garantidamente utilizados nas ambulâncias ferroviárias, nem fazia sentido que postais ilustrados vindos da Madeira e Portugal para Luanda, passassem por aqui e andassem a passear pela ambulância ferroviária para regressarem novamente a Luanda três dias depois.
            É quase garantido estarmos na presença das “quiméricas” ambulâncias marítimas, porém esta matéria ainda exige mais investigação e uma necessidade imperiosa de observação de mais exemplares nas mesmas condições, para se poder dar como fiável esta abordagem que agora se faz, sobre as ambulâncias marítimas a bordo dos paquetes da Empresa Nacional de Navegação, entre Angola e S. Tomé e vice-versa. No futuro há que dar mais atenção a objectos postais circulados neste período, pois mais exemplares existirão circulados nestas condições.
            Para finalizar quero reiterar os meus agradecimentos aos cedentes dos exemplares reproduzidos, Manuel Costa e Guilherme Rodrigues, bem como ao Acácio Luz pela preciosa ajuda na cedência de alguma legislação.
           
Bibliografia
  • Boletim Oficial de Angola
  • Boletim dos Correios de Angola n.º 9 - Setembro 1913
  • Boletim dos Correios e Telégrafos de Angola n.º 11, Novembro 1917

1 comentário:

  1. Parabéns por mais esta contribuição para o estudo da história postal de Angola.
    Teremos que estar agora todos mais atentos a estas marcas, aguardando o aparecimento da ambulância VI.
    Obrigado
    Um Abraço
    L&E

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