S. Tomé - Alfandega e Porto |
Num recente apontamento, aqui publicado, tive a oportunidade de dar a conhecer o caricato episódio, sobre a necessidade da utilização de selos bipartidos no Príncipe como recurso à falta generalizada de selos postais, na estação daquela localidade santomense.
Pelo estudo que se tem feito sobre a actuação do Administrador dos Correios de São Tomé, Joaquim Augusto da Silva, podemos quase assegurar que esse episódio poderá terá sido o balão de ensaio para uma acção mercantilista generalizada, com base na produção de sobretaxas em selos de S. Tomé e Príncipe.
A Portaria de 26 de Setembro de 1888 veio regulamentar a requisição de selos postais por parte das Repartições de Fazenda provinciais. Estipulava o artigo n.º 1 que no início de cada trimestre se deveria proceder à requisição dos selos necessários ao consumo de três. Porém o artigo n.º 2 previa a existência de um depósito de selos e outras fórmulas de franquia para um consumo provável de seis meses. A conjugação destes dois artigos determinava que houvesse sempre um depósito de garantia que permitisse suprir consumos extraordinários, tendo em vista a erradicação das medidas que se tomavam, com alguma regularidade, de se sobretaxar selos em situação de quebras de stocks.
Dando cumprimento ao regulamentado na citada Portaria, a Repartição de Fazenda de S. Tomé e Príncipe requisitou no início do 1.º trimestre de 1889 (trimestre imediato à publicação da Portaria) as seguintes quantidades de selos:
Porém no que concerne ao 2.º e 3.º trimestre não se procedeu à requisição de qualquer quantidades de selos, contrariando assim o espírito da citada portaria.
É pois inexplicável o facto de através do Boletim Oficial do Governo da Província de S. Tomé e Príncipe n.º 34 de 24 de Agosto de 1899 se ter publicado um aviso da Administração dos Correios informando que por ordem superior tinha-se resolvido sobretaxar com 5 reis alguns selos de 10 reis para ocorrer a necessidades de serviço.
Com este acto dá-se início a uma descarada sucessão de emissões especulativas de selos, tendo como seu mentor o Administrador dos Correios de S. Tomé e Príncipe. Com este tipo de actuação obteve proveitos chorudos, explorando a apetência dos filatelistas da época pelas variedades filatélicas. Os conceitos de coleccionismo filatélico eram muito diferenciados em relação aos da actualidade. A importância das colecções media-se pelo maior número de variedades filatélicas apresentadas.
A não requisição atempada dos selos, deu azo a que este funcionário pressionando o Governo-Geral se permitisse fazer as emissões que entendesse. A decisão de mandar sobretaxar os selos é da responsabilidade do Governador a pedido do Administrador. Só depois de consumado o facto é que era dado conhecimento ao Ministério do Ultramar, pedindo-se a seu acordo, tendo em conta a situação de emergência e o interesse do público.
Normalmente, a comunicação desta ocorrência ás entidades superiores, era feita por duas vias. A primeira, e no caso apresentado, através do ofício n.º 96 de 23.08.1889 do Administrador dos Correios de S., Tomé e Príncipe para o Conselheiro Director Geral dos Correios Telégraphos e Pharoes, nos seguintes termos:
Tenho a honra de informar a V. Ex.ª que não havendo na província sellos postaes da taxa de 5 reis, e havendo um numero grande de sellos postaes da taxa de 10 reis, esta administração propoz ao Exm.º Governador da província para carimbar na imprensa nacional, e com a taxa de 5 reis, mil da taxa de 10 reis, para não prejudicar o publico e bem assim o regular andamento do serviço. Dos sellos referidos tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.ª um exemplar.
Deus guarde a V. Ex.ª.
O Administrador
Joaquim Augusto da Silva
A segunda pelo ofício n.º 169 de 26 de Agosto de 1899 do Governador-Geral da Província de S. Tomé e Príncipe para o Conselheiro Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, com o seguinte teor:
Objecto: Communico que foram mandados carimbar com a taxa de 5 reis 1000 sellos de 10 reis.
Tenho a honra de communicar a V. Ex.ª que não havendo n’esta ilha sellos postaes da taxa de 5 reis, ordenei, conformando-me com a proposta do Administrador dos Correios da província, que 1.000 sellos da taxa de 10 reis fossem carimbados na imprensa nacional com a taxa de 5 reis.
Afim de occorrer de prompto a uma falta extremamente sensível e por me parecer que não havia inconveniente n’isso, adoptei este alvitre, esperando que V. Ex.ª se dignará de approvar a resolução que tomei.
A requisição dos sellos de que a província carece já tinha siso enviado ao competente destino, mas ainda não houve tempo de ser satisfeita; conto, porem, com a próxima remessa dos mesmos sellos, o que fará cessar esta situação anormal, que não é de suppor que se repita com as requisições trimestraes que superiormente me foi ordenado fazer.
Deus guarde a V. Ex.ª
Augusto Jesus Rodrigues Sarmento
Governador da Província
Até esta momento confirma-se que:
- A Administração dos Correios e a Repartição de Fazenda não deram cumprimento ao regulamentado na Portaria de 26 de Setembro de 1888, nem apresentam qualquer justificação para o facto.
- A emissão de selos sobretaxados de 5 reis sobre 10 reis da emissão de D. Luís I foi de 1.000 sellos.
- A sobretaxa desses selos se processou na Imprensa Nacional de S. Tomé e Príncipe.
- Mandou-se sobretaxar primeiro os selos e só posteriormente se solicitou a competente autorização ministerial. Habitualmente solicitava-se a devida autorização, por via telegráfica, e só depois de procedia á sobretaxa.
- A única e pobre justificação para a emissão fundamenta-se numa falta extremamente sensível de selos. Entende-se ser esta fundamentação muito pouco rigorosa.
- Como curiosidade realça-se o delicioso pormenor do envio de um único selo ao Director Geral dos Correios em Lisboa, para seu conhecimento do que se havia produzido.
Entretanto a Repartição de Fazenda de S. Tomé tinha solicitado, com carácter de urgência, à Direcção Geral do Ultramar a remessa de 2.800 selos em requisição datada de 24 de Julho de 1889. Se havia a eminência de esgotamento dos selos da taxa de 5 reis porque não se fez o pedido por via telegráfica como era hábito nestas circunstâncias?
Senão vejamos:
A requisição datada de 24 de Julho seguiu por correio oficial no Paquete Portugal que passou por S. Tomé no dia 25 de Julho tendo chegado a Lisboa no dia 20 de Agosto de 1889. No dia 6 de Setembro pelo Paquete Angola a Casa da Moeda remeteu os 2.800 selos de 5 reis que chegaram a S. Tomé no dia 24 de Setembro de acordo com ofício n.º 23 de 24 de Setembro da Repartição de Fazenda.
Se o pedido tivesse sido feito telegraficamente, tendo em conta a escassez de selos desta taxa, ele seria recepcionado nesse mesmo dia em Lisboa, o que permitia que a Casa da Moeda pudesse remeter os selos pelo Paquete S. Tomé que tendo saído de Lisboa a 6 de Agosto aportou a S, Tomé no dia 24 desse mesmo mês, ainda a tempo de se evitar a sobretaxa dos selos. O que se constata é que não havia muito interesse em receber com urgência esses selos.
Na presença do ofício do Governador-Geral, a Direcção Geral do Ultramar aprova a decisão tomada por, porém não se satisfaz com as justificações apresentadas, que determinaram a necessidade de se sobretaxar os referidos selos. Entende que tal situação se fica a dever a falta de cumprimento do regulamentado na Portaria de 26 de Setembro de 1888 atrás referida, pelo que solicita que a Administração dos Correios se explique como deixou que a situação se arrastasse a um ponto em que se tivesse de tomar tais medidas de recurso. Assim é remetido o ofício n.º 317 datado de 27.09.1889 para o Governador-Geral de S. Tomé e Príncipe nos seguintes termos:
Sua Ex.ª o Ministro, a quem foi presente o officio de V. Ex.ª n.º 169 de 26 de Agosto ultimo, approva a resolução tomada, sobre a proposta da Administração dos Correios, de fazer carimbar alguns sellos de 10 reis em circulação nessa Província para accorrer ás necessidades de momento que se manifestaram na mesma Província.
Por ordem do mesmo Ex.º Sr. tenho a honra de dar conhecimento a V. Ex.ª do seguinte despacho que se lavrou no officio em que o Administrador dos Correios participou a adopção da providência que muito acertadamente foi tomada por motivo de força maior:
“As necessidades de momento, a que a Administração quis provar com a proposta que fez subir á presença do Ex.mº Sr. Governador não existiriam se a mesma administração tivesse pela sua parte concorrido para a execução da portaria de 26 de Setembro de 1888, informando superiormente dos sellos e outras formulas de franquia necessários para o consumo de seis meses e para o fornecimento periódico trimestral. Queira pois a mesma Administração explicar como é que as cousas chegaram ao extremo de ser necessário propor uma providencia a que pela citada portaria se teve em vista evitar que fosse mister recorrer. Com a informação será devolvido este officio.
2.ª Repartição em 27 de Setembro de 1889.
O Chefe da Repartição
A. Vidoeira”
A este ofício respondeu a Administração dos Correios com o ofício n.º 124 de 11 de Novembro de 1889, que não se conseguiu encontrar no acervo do Arquivo Histórico Ultramarino. Seria de grande importância o acesso a esse documento. Porém, pela resposta da Direcção Geral do Ultramar podemos deduzir as razões apontadas pelo seu Administrador. Vejamos então o que relata, em resposta, o ofício n.º 393 da Direcção Geral do Ultramar datado de 14.12.1889 para o Administrador dos Correios de S. Tomé e Príncipe:
Exmº. Sr.
Quando esta Repartição lavrou o despacho de 27 de Setembro último de que também trata no seu ofício n.º 124 de 11 de Novembro seguinte, ignorava a causa determinante da crise que se deo de falta de sellos da taxa de 5 reis nessa Administração, aliás em vez da informação que pedio teria desde logo manifestado os inconvenientes que haveria em preterir os interesses públicos e particulares por uma simples especulação commercial que outra cousa não é a compra de avultada porção de fórmulas de franquia com o propósito declarado e tornado conhecido de os lançar num mercado estrangeiro.
A missão de V. Ex.ª nessa Província como Chefe Superior dos Correios seria de medíocre importância e de uma transitória responsabilidade se não tivesse de, a par do expediente corrente de todos os dias, prevenir por meio de um prudente tacto administrativo e de um superior critério, eventualidades que poderia comprometter o serviço, e para isso não é mister intrometter-se no serviço de repartições alheias e basta aproveitar bem os elementos de que dispõe a Administração a seu mui digno cargo para tornar productivas e efficazes as faculdades de que a Lei o investio.
São pois de um interesse secundário para esclarecimento do caso em questão os argumentos addusidos, os quaes, sem embargo d’isso a Direcção Geral há por bastantes para, em homenagem aos bons serviços prestados por V. Ex.ª, e ao seu reconhecido zelo, a pôr termo ao incidente que se deo e que a minha Direcção Geral espera não se repita.
Pelo que se depreende deste ofício, o Administrador dos Correios ter-se-ia justificado com a venda de uma quantidade elevada de selos de 5 reis a um comerciante estrangeiro, ficando assim sem selos para o consumo corrente. Segundo Carlos George no artigo intitulado “Sobrecargas de S. Tomé de 1889 e 1892” , o Administrador terá vendido 2.500 selos de 5 reis a um tal súbdito inglês, Mister Burt. Porque permitiu esta venda? Será que não pôs em causa o normal funcionamento dos serviços, permitindo o esgotamento imediato dos selos?
O ofício é de facto muito contundente para com o Administrador e só o reconhecido zelo e em homenagem aos bons serviços prestados até então, a Direcção Geral entendeu pôr fim ao incidente sem mais consequências. Porém o Administrador estava determinado em prosseguir nos seus propósitos. Não demoraria muito em voltar a cometer os mesmos pecados. Num próximo apontamento voltaremos ao assunto.
Dupla sobrecarga |
Sobrecarga invertida |
Entretanto, porque não chegava apenas produzir uma emissão reduzida de 1000 selos, que no florescente mercado filatélico lhe renderia elevados proventos, em conivência com terceiros, ainda se “fabricaram” mais umas quantas variedades, tais como sobretaxas invertidas e duplas, assim como, com e sem acentuação da letra “e” de reis, conforme se constata pelos exemplares que reproduzimos.
Sem acento em “reis” |
Muitas vezes os leitores me questionam sobre como eram permitidas estas negociatas. Em meu entender, a razão de ser deste autêntico “regabofe” tinha como suporte a grande cumplicidade que existia entre os quadros superiores das repartições coloniais, adquirida durante os vários anos de convivência. Muitas das vezes estes funcionários superiores eram mandados em comissões de serviço para as colónias por questões disciplinares. Estes mesmos funcionários eram mal pagos e como tal tentavam sempre que houvesse oportunidade obter proventos acessórios, usando e abusando do seu poder local. Os Governadores-Gerais que chegavam às colónias, muitas vezes para aí nomeados também por razões disciplinares, não estavam para se incomodar, nem para interferir muito na gestão da colónia, pois a sua estadia era transitória (ou morriam pouco tempo depois da sua chegada, frutos das maleitas tropicais, ou eram enviados de volta para o Continente por padecerem de doença grave), pelo que eram facilmente influenciáveis pelos altos funcionários que aí residiam há muitos anos. Estes eram na realidade os “governantes” das colónias e raramente eram sancionados disciplinarmente pelos seus actos menos legais. Acobertavam-se uns aos outros e quando algum cometia uma falta muito grave, grande demais para ser escamoteada havia sempre uma aposentação para solucionar o problema.
Voltando aos selos sobrecarregados, direi que eles foram utilizados num curto espaço de tempo de pouco mais de trinta dias, tempo este que medeia entre o dia 21 de Agosto, data do aviso da Administração dos Correios, e o dia 24 de Setembro, data da chegada do Paquete S. Tomé que transportou os 2.800 selos requisitados.
Resta agradecer ao meu amigo Manuel Janz a cedência das imagens dos selos que ilustram este apontamento.
Bibliografia
· Boletim Oficial da Província de S. Tomé e Príncipe
· AHU – Cota 2639 1D SEMU DGU CX 1889 Processos correios
· AHU – Cota 447 1N SEMU DGU LV 1889 Minutas
· AHU – Cota 448 1N SEMU DGY LV 1889 Minutas
· AHU – Cota 449 1N SEMU DGU LV 1889 Minutas
· AHU – Cota 450 1N SEMU DGU LV 1889 Minutas
· “As sobrecargas de S. Tomé de 1889 e 1892” , Carlos George, 1939, Portugal Filatélico